quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Por tudo isso, desculpem-me os funcionários públicos...


Nota na página do Facebook por Renata Germano a Quarta-feira, 16 de Novembro de 2011 às 16:37


Mais injusto do que cortar dois subsídios no sector público seria cobrar ainda mais impostos ao sector privado. O Presidente da República está preocupado com a "equidade" nos sacrifícios. O presidente da Câmara do Porto também. Eu também estou preocupado com essa equidade. Preocupa-me em particular que haja a tentação de voltar a aumentar os impostos (como sugeriu Rui Rio, entre muitos outros), pois pressinto que isso geraria muito mais iniquidade do que retirar, nos próximos dois anos, os subsídios de Natal e férias, aos pensionistas e aos funcionários públicos que ganham mais de mil euros por mês.

Antes de explicar o meu raciocínio faço, porém, uma declaração de interesses: não sou funcionário público nem pensionista. A minha mulher e os meus filhos também não. Mas o meu pai foi funcionário do Estado toda a vida e hoje é pensionista. Tenho, se quiserem, uma aproximação à visão dos dois lados, mesmo considerando que, nesta querela, não se deve dividir o país em duas metades.

O meu ponto de partida é simples: desde que estalou a crise, em 2008, os grandes sacrificados têm sido os trabalhadores do sector privado. Não se trata de virar uns contra outros, trata-se de reconhecer a verdade. Basta olhar para o número de desempregados, que saltou de 425 mil para perto de 700 mil. A quase totalidade destes 275 mil novos desempregados trabalhava no sector privado. Haverá alguns antigos professores contratados e ex-tarefeiros da administração pública, mas que representam uma quota ínfima deste total.

Estes números podiam ser ainda piores se muitos trabalhadores do sector privado não tivessem optado (ou sido obrigados a optar) pela passagem antecipada à reforma: entre 2008 e 2010 a idade média de passagem à reforma no regime geral da Segurança Social diminui de 63,1 para 62,5 anos (apesar de uma reforma que penalizou as reformas antecipadas). No mesmo período, a idade média de passagem à reforma dos trabalhadores da administração pública subiu de 59,7 para 60,1 anos (números da Pordata).

Em tempos de crise o ajuste mais violento é sempre o que é feito via desemprego - e estes números não deixam grandes dúvidas sobre onde tem caído o maior peso da aflição nacional.

Não costuma discutir-se que o emprego no Estado é mais seguro e que proporciona melhores condições no acesso à reforma (os funcionários públicos reformam-se mais cedo e com pensões mais altas - apenas 10 por cento do total dos pensionistas recebe mais de 1000 euros por mês, mas essa percentagem sobe para quase 50 por cento entre os reformados do Estado, números da Pordata). Nestes domínios, a sua vantagem é evidente. Porém, será que a diferença salarial de que também beneficiam face ao privado permite encaixar um corte tão grande como o previsto? A resposta não é simples, mas eu diria que, provavelmente, não permite. Mas acrescento: mesmo assim permite-lhes encaixar esse corte melhor do que se ele fosse igual para todos.

Tem sido muito citado um estudo de 2001 do Banco de Portugal sobre o diferencial de rendimentos entre trabalhadores do sector público e do sector privado. Esse estudo existe, as conclusões são inequívocas, mas não é o estudo mais recente: há outro do Verão de 2009, também publicado no boletim do Banco de Portugal. Trata-se de um trabalho muito detalhado, que utiliza números que vão de 1996 a 2005 e conclui que não só os salários no sector público são mais elevados para idênticas funções e mesmo número de anos de experiência, como esse fosso se tinha vindo a agravar: era de 10 por cento em 1996, passara para 15 por cento em 2005. Mais: se considerássemos os salários horários, o facto de se trabalhar menos horas no sector público fazia saltar o prémio salarial para 25 por cento.

Costuma desvalorizar-se este tipo de estudos dizendo que esse prémio existe sobretudo nas categorias mais baixas, não nas categorias mais altas. Este estudo também responde a esta questão: no essencial, só no topo do topo do sector público e em algumas profissões muito específicas é que isso é verdade. Mais, e cito: "o prémio [do sector público] é particularmente alto em áreas como a saúde e a educação", ou seja, precisamente nas áreas onde há mais emprego qualificado na administração pública. O estudo sublinha também que o prémio salarial dos funcionários públicos tem aumentado mais "para os trabalhadores licenciados em início de carreira". Poderia continuar, mas o ponto está estabelecido: pelo menos até 2005 compensava, e muito, ser funcionário público.

E depois de 2005? Infelizmente, não conheço nenhum estudo mais recente, mas voltando a consultar a Pordata não encontro razões para crer que esta relação se tenha alterado, sendo até possível que o diferencial tenha aumentado. Basta notar que, para as carreiras gerais da administração pública, a remuneração mínima cresceu 11 por cento (depois de descontada a inflação) entre 2005 e 2010. A remuneração máxima cresceu oito por cento. Nas carreiras especiais (professores, médicos, juízes, militares, bombeiros...) estes valores ficaram constantes. Não creio que no sector privado a evolução tenha sido mais favorável.

Todos estes números e estudos não deixam lugar para grandes dúvidas: se os sacrifícios pedidos são brutais, e irão penalizar muitos e muitos portugueses, apesar de tudo ainda é na administração pública que existe mais folga - um termo agora em voga - para estes novos sacrifícios. Depois do preço elevadíssimos que os trabalhadores do sector privado estão a pagar em desemprego, em empregos sub-pagos, em intranquilidade, em diminuições salariais e por aí adiante, falar em equidade quando se propõe que paguem ainda mais taxas e impostos é próprio de quem, bem ou mal, quase só conhece o relativo conforto de se ser empregado do Estado.

Outra questão bem diferente é saber se estes cortes são justos ou injustos - todos seriam sempre injustos -, ou como chegámos a esta situação - e todos sabemos como foi -, ou ainda se haverá alternativas credíveis que não passem por penalizar outros - alternativas que, mal ou bem, ninguém apresentou.

Por tudo isso, desculpem-me os funcionários públicos, mas quem não achou estranho, ou até aplaudiu, um aumento de 2,9 por cento em plena crise e num ano de eleições, algum dia teria de também pagar a factura. Ela chegou agora, com juros. É uma tragédia, pois é, mas decorre da verdade mais essencial destes dias: NÃO HÁ DINHEIRO.

Jornalista José Manuel Fernandes - 11-11-2011

Sem comentários:

Enviar um comentário